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#NiUnaMenos: por dentro do 8M na Espanha

Atualizado: 6 de mar. de 2021

Mobilização massiva, huelga 24h, greve feminista, cidades abarrotadas entoando cânticos e levantando cartazes para uma mudança real. Este é o cenário de um evento que ficará marcado na história, tornando o dia 8 de março de 2019 um marco inesquecível para a Espanha.


Segundo o jornal El país, somente entre Madrid, Valencia e Barcelona, as manifestações convocadas na parte da tarde chegaram a reunir mais de 770.000 mulheres e homens. Em Valencia, a concentração foi sem dúvida uma das maiores já vistas na cidade. Na Andaluzia, foram autorizados protestos nas oito capitais – somente em Sevilha 50.000 participaram, segundo a Polícia local – e em 139 povoados. A Federação de Associações de Mulheres Rurais divulgou que ocorreram manifestações em centenas de municípios pequenos e médios de todo o país.


Uma destas pequenas cidades foi a minha amada Segovia, província localizada na comunidade autônoma de Castilla y León com cerca de 30.000 habitantes no centro, local que foi o meu lar durante os anos de 2018 e 2019 e pelo qual não há um só dia em que eu não me recorde com todo o meu carinho. Foi esta a cidade que me abriu os braços em terras ibéricas, me convidando para concretizar o estudo de um mestrado em Comunicação com fins sociais e para trabalhar na área de Serviços Sociais da Universidad de Valladolid. Posso dizer que vivi o pré, durante e pós 8M com grande intensidade e de maneira bastante imersiva. Além de estar diretamente ligada a todas as ações universitárias, fazendo parte da área social e da frente feminista, estive envolvida com todos os eventos públicos relacionados ao dia internacional da mulher na cidade, pois prestava serviço também na prefeitura de Segovia, na área de Educação e Juventude.


Além dos encontros, palestras, vivências universitárias e ações culturais em locais públicos, como aluna do mestrado eu toquei um projeto que idealizei com base na troca de cartas anônimas, com objetivo de promover um intercâmbio de palavras de força, apoio, carinho e empatia entre mulheres. O chamei de #EscribeAUnaMujer, e a ele eu certamente dedicarei uma nova matéria, pois suas mensagens foram tão profundas e sua repercussão tão intensa que tomaria muitos dos parágrafos desta história por dentro do 8M espanhol, onde já se há tanto a partilhar.


Mobilização estudantil no dia 7 de março na Universidad de Valladolid - Segovia - ES.

No dia 8 as mulheres participaram das manifestações nas ruas e greve estudantil.


Oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975, o chamado Dia Internacional da Mulher é comemorado desde o início do século 20. O dia 8 de março, daí a expressão 8M, é considerado feriado nacional em vários países, como por exemplo a Rússia, onde as vendas nas floriculturas se multiplicam nos dias que antecedem a data, já que esta ganhou um caráter bastante comercial - não só neste país mas em muitos lugares no mundo. Trata-se de mais uma situação distorcida para inserirmos na conta do capitalismo! Na China, muitas vezes as mulheres chegam a ter horários flexíveis de trabalho nesta data, conforme é recomendado pelo governo, apesar de nem todas as empresas seguirem esta prática. Em países como Estados Unidos e Brasil, o mês de março é um mês que caracteriza a movimentação de campanhas acerca do tema e também de marchas das mulheres. Nos últimos anos, a data foi marcada por protestos nas principais cidades em solo brasileiro, com reivindicações diversas sobre igualdade, justiça, participação política e violência contra a mulher.


Na Espanha, a data ganhou um contexto diferente de tudo o que eu já havia visto. Para entendermos como o país chegou a este nível massivo de mobilização e a um dos maiores exemplos mundiais na questão de abordagem de perspectiva de gênero, é preciso esclarecer algumas questões históricas, culturais, sociais e políticas sobre o tema. É fato que as espanholas se inspiraram fortemente em movimentos feministas e lideranças latino-americanas, criadoras do movimento #NiUnaMenos que nasceu após um caso de feminicídio que comoveu a Argentina. Segundo o El país, Chiara Páez tinha 14 anos e estava grávida quando desapareceu, em 10 de maio de 2015. O corpo foi encontrado dias depois na casa dos avôs do seu namorado, Manuel Vallejos, então com 16 anos. A menina havia sido assassinada a pauladas e enterrada no jardim da casa, em Rufino, 450 quilômetros ao oeste de Buenos Aires. O caso gerou uma grande repercussão e um grupo de jornalistas e escritoras começou a se manifestar sob o lema "Nem Uma A Menos". A convocação viralizou e a marcha contra a violência machista daquele 3 de junho, há 6 anos atrás, reuniu multidões. A indignação feminina paralelamente ganhava o espaço público também em países vizinhos. Nossas hermanas chilenas foram protagonistas de diversos atos, entre eles o que deu vida ao hino ''El violador eres tu'' em 2019 e um ano antes, milhares de mulheres foram as ruas no Brasil no movimento #EleNão, contra as falas e atitudes machistas do até então candidato a presidente do país.


Apesar da América Latina continuar sendo um dos lugares mais violentos para mulheres no mundo, a história e os fatos comprovam que a grandeza do 8M na Espanha foi bastante influenciada pela potência dos movimentos latinos, com personagens tão engajadas, vozes tão poderosas e mensagens tão necessárias de serem ouvidas, que tiveram força para cruzar o oceano Atlântico.


Na imagem, eu e minha amada amiga e companheira do mestrado, Maria José Aburto.

Representando Brasil e Nicarágua nas manifestações do 8M em Segovia.


É necessário pontuar que a Espanha passou por um período de ditadura historicamente recente, que se estendeu até 1975. Foi uma época de bastante supremacia patriarcal seguida por grandes movimentos de mudança no país que hoje conta com um sistema multipartidário que desde 1990 é predominantemente governado pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o conservador Partido Popular (PP). Desde 2018, a Espanha é governada por Pedro Sánchez, economista e secretário geral do PSOE que deu continuidade e potencializou políticas públicas com foco em erradicar a violência de gênero no país. A população espanhola conta com uma lei pioneira, uma justiça especializada e desde o início dos anos 2000 virou um dos países mais destacados na luta contra o feminicídio. A cobertura midiática e participação da sociedade civil também são quesitos muito importantes para a diminuição de casos de violência contra a mulher. Me lembro de um caso de feminicídio que ocorreu em Madrid no ano de 2019 e ao menos durante uma semana ele se tornou manchete e assunto em todos os principais canais e jornais do país. Além disso, me acordo de um canal de televisão aberto dar uma verdadeira aula explicando de forma bastante didática por meio da pirâmide do machismo a importância de falarmos sobre situações machistas enraizadas que servem de base para uma sociedade que alimenta a violência contra mulheres de forma estrutural. Lembro que este episódio me marcou profundamente, pois eu só tive acesso a este gráfico na universidade e acredito muito no potencial educativo por meio da democratização destes conhecimentos pelas grandes mídias.


Com relação a participação da sociedade e todo o envolvimento de grande parte da população espanhola em meio ao tema, podemos dizer que este assunto é o coração desta matéria, amigue leitore!


Aqueduto de Segovia, principal marco turístico da cidade com milhares de pessoas na mobilização.


''Feminazi'' - Nos comparam com gente que matava e não que morria.


O dia começou durante a noite. No 7 de março nos juntamos a uma temperatura bem próxima dos 5°C às 23h para começarmos o 8M juntas, fortes, animadas e fazendo barulho. Levamos velas, fizemos nossas mentalizações, dançamos, cantamos e nos conhecemos. Estávamos em cerca de 100 mulheres de todas as idades, munidas com um microfone e um alto falante.


Formamos os dizeres 8M no chão, nos saludamos e fomos descansar. Foi um esquenta perfeito para o que nos esperaria no dia seguinte, acalentando os nossos corpos e corações naquela madrugada fria. Fazendo subir um fogo que difere muito ao da paixão ou ao da fogueira. Uma centelha de chama que eu nunca havia experimentado naquela intensidade.



Amanheceu e a concentração de mulheres aconteceu ao meio dia na Praça de San Martin. Esta foi realizada exclusivamente por mulheres que estavam em huelga, ou seja, greve a nível laboral, estudantil e de consumo. Fique com a gente, pois ao final desta matéria colocaremos a tradução na íntegra do panfleto que circulou pela cidade e que explica o que é a greve e os porquês dela. Na concentração já éramos muitas e neste momento eu vivi algo que mais parecia uma dimensão paralela, uma espécie de sonho e de vivência que não se explica, mas eu me esforçarei ao máximo para transmitir as mesmas sensações de pertencimento, cooperação e amor que entoavam naquele espaço. Nos dividimos em linhas de produção, onde algumas se responsabilizaram por fazer os cartazes, outras por criar materiais artísticos para a manifestação geral que aconteceria às 19h, outras cuidavam da preparação e entrega do lanche comunitário que foi providenciado - onde cada uma levou o que produziu em casa, não havia nada industrializado - e outras tiveram a missão muito especial de fazer música e tornar o ambiente ainda mais acolhedor e divertido!



Minha contribuição na produção dos cartazes que seriam utilizados na manifestação geral.


Não haverá revolução sem evolução de consciências.

Um dos meus cartazes preferidos!


Com a chegada do momento da manifestação geral, a praça foi sendo tomada pela multidão.


Às 19h foi dado início ao que é chamado de manifestação geral ou mista, em que os homens se juntaram ao grupo e saímos para caminhar até o Aqueduto da cidade como ponto final da manifestação. Foram em torno de duas horas de caminhada cantando sem parar. Encontrando colegas em todas as partes, fazendo amizades e se emocionando a todo o tempo. O estado de espírito que prevalece é o êxtase, um desejo de revolução que habita todas as células do corpo e que dão movimento para além do físico. Apesar do ímpeto de questionamento, do sentimento de basta e desejo de mudança, tudo ocorreu em paz. Não houve nenhum atrito, nenhuma briga, nenhum patrimônio quebrado, devastado ou nem sequer tocado. Todos os resíduos que produzimos foram descartados corretamente antes, durante e após a manifestação. Um movimento que mais parecia um sonho, daqueles que a gente vive de forma intensa, que se assemelha muito à realidade e o qual não queremos acordar.



Imagem recebida em tempo real do protesto em Madrid que fez meu coração quase pular do peito.

Crédito da foto: Javier Herrero. Querido parceiro de luta e um dos melhores seres humanos que já conheci.



Estávamos chegando ao fim do dia, éramos uma multidão pulsante em frente ao emblemático aqueduto de Segovia. As lideranças do movimento se posicionaram de modo a que grande parte das pessoas pudessem escutar as vozes de reivindicação e que anunciavam uma enorme mudança. Foi neste momento, que por meio desta fala, soubemos que enquanto estávamos nas manifestações, mais uma mulher havia sido morta nas mãos de seu companheiro na cidade de Madrid. Naquele momento fez-se um silêncio ensurdecedor. Vários sentimentos foram mesclados, pois ali haviam muitas pessoas que já perderam mulheres queridas nas mãos de assassinatos, e naquele momento estávamos em uma presença tão uníssona que todas as pessoas puderam sentir, em diferentes níveis, o que é esta dor da perda. A partir deste momento, tivemos a noção e a comprovação do quão necessário foi cada atitude referente ao movimento 8M até o momento. Cada planejamento. Cada encontro. Cada palavra cantada. Cada cartaz. Cada grito. Cada passo. Cada ato e contribuição desde as menores até as grandiosas, foi importante.


Acredito plenamente que o 8M é uma metáfora das nossas atitudes diárias com relação à luta feminista. Onde cada discurso é importante. Cada desconstrução e ação importa, seja ela dentro de casa, nas empresas, nos espaços públicos ou nas passeatas. Nenhum esforço é em vão. Nunca foi e nunca será.


Somos sementes de uma nova consciência. Mais integradora, sutil a nível energético, mais amorosa e também mais feminina. Trazendo o equilíbrio necessário para uma sociedade que ainda alimenta uma estrutura patriarcal decadente e enferma, porém que já está despertando para algo maior. O futuro é bastante incerto, mas de uma coisa eu tenho certeza: somos nós quem o construímos e nós ditaremos como ele será. Por isso a importância de sonhar e cocriar este novo mundo com a fé e a confiança de que ele já existe em algum lugar e está só aguardando a nossa atitude para alcançá-lo.



Por aqui, seguimos de mãos dadas e caminhando com passos firmes. De um lado com a paz e do outro com a esperança. Ambos pronomes femininos.


Bárbara Tomiatti Giancola

É a fundadora e diretora da @ComunicaComAlma

Brasileira com uma parte da alma espanhola, comunicadora para a paz,

empreendedora social, sonhadora incansável e feminista.




ANEXO - PANFLETO #HACIALAHUELGAFEMINISTA

Tradução do folheto informativo distribuído em todos os estabelecimentos da cidade de Segovia (2019).


O que é a greve feminista?

Voltamos a convocar no dia 8 de março de 2019 uma greve geral feminista em todos os espaços da vida.

Esta greve nos faz parar 24h em âmbito laboral, de cuidados (do lar e fora dele), de consumo e estudantil. Nosso trabalho ainda é desvalorizado, menosprezado e maltratado em muitos âmbitos e o mundo não funciona sem nós. Queremos parar tudo e demonstrar que somos imprescindíveis e que se nós paramos, o sistema também para.

Por que uma greve feminista?

Para que as violências machistas sejam consideradas um problema estrutural e sejam tomadas medidas eficazes ao respeito. Para sermos donas dos nossos corpos, desejos e decisões. Por uma sociedade que respeite e valorize a diversidade sexual e de identidade ou expressão de gênero. Para que o aborto seja reconhecido como um direito garantido e praticado também em Segovia. Para por em valor o aporte das mulheres migrantes na sociedade e acabar com o racismo institucional. Para que o Estado garanta saúde, educação, serviços sociais, ajudas e acesso a vivendas sociais. Para deter a destruição ambiental e construir uma economia sustentável, justa e solidária.


Por uma mudança de todas as consciências e na forma de ver as mulheres! Para que o resto da sociedade e Estado assumam sua parte nesta tarefa! Queremos uma vida digna para todas as mulheres!


Por que não vamos consumir no dia 8 de março?

Porque queremos construir estratégias de consumo alternativas ao capitalismo, queremos um consumo que respeite nossos direitos e nossas vidas, um consumo consciente, alternativo, sustentável e de proximidade com o qual o povo não seja explorado e que respeite o entorno socioeconômico e ambiental. O modelo que sustenta o mercado prejudica especificamente as mulheres. O sistema produtivo e o patriarcado se beneficiam do trabalho gratuito realizado por nós. Temos os piores contratos, as piores pensões e menor poder aquisitivo. Para o dia 8 de março, propomos não comprar nem consumir nenhum produto de serviços durante 24h, mais além dos imprescindíveis para sobrevivência e ativismo deste dia (água, eletricidade, transporte, comunicações, alimentos). Sabemos que deixar de consumir por um dia não realizará uma grande mudança, por isso lhe convidamos a realizar um consumo consciente e sustentável durante todo o mês de março e fazer esforços para manter no futuro. Lhe chamamos para a greve de consumo no dia 8 de março porque o bem econômico não pode ser benefício nas mãos de poucos e sim para a vida digna de todas as pessoas.



 
 
 

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